Mário Magalhães 12/12/2013 13:44
Numa eleição histórica encerrada anteontem, a comunidade do
Colégio Estadual Presidente Emílio Garrastazu Médici, de Salvador, decidiu que
a instituição deve ser rebatizada como Colégio Estadual Carlos Marighella.
Os eleitores, na maioria alunos, deram 406 votos (69%) a
Marighella e 128 ao geógrafo Milton Santos. Os nulos foram 25, e os brancos,
27. O resultado será encaminhado à Secretaria da Educação da Bahia, para que o
Estado promova uma “reinauguração”, palavra empregada pela diretora do
estabelecimento, Aldair Almeida Dantas, em conversa com o blog.
O colégio foi inaugurado em 1972, quando o general gaúcho
Médici (1905-85) ocupava a Presidência da República, sem ter recebido um só
voto popular. Seu governo (1969-74) marcou o período de maior repressão e falta
de liberdades na ditadura imposta em 64.
Do golpe que derrubou o presidente constitucional João
Goulart até 1985, nos 21 anos em que ditadores ocuparam o Palácio do Planalto,
ao menos 400 oposicionistas foram mortos por agentes públicos. Boa parte havia
sido presa com vida, estava sob custódia do Estado e foi torturada até a
morte. Mais de 130 cidadãos tiveram os corpos
desaparecidos para sempre, sem que as famílias pudessem lhes oferecer um
enterro digno. Nem mesmo a legislação da ditadura autorizava tortura e execução
de seres humanos.
O guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911-69) foi
declarado pela ditadura, em novembro de 1968, “inimigo público número 1” . Militante comunista na maior
parte da vida, ele se incorporou em 67 à luta armada contra o regime. Fundou a
maior organização guerrilheira de combate à ditadura, a Ação Libertadora
Nacional, ALN.
Foi assassinado em 1969, no governo Médici, por ao menos 29
membros da polícia política armados até os dentes. Desarmado, Marighella não
portava nem um canivete. Em decisões de 1996 e 2011, a União reconheceu
que o “inimigo” poderia ter sido preso vivo, assumiu a responsabilidade por seu
homicídio e pediu perdão à sua família.
O outro candidato da eleição, o geógrafo baiano Milton
Santos (1926-2001), foi um dos pensadores brasileiros mais brilhantes do século
XX. Perseguido pela ditadura, foi obrigado a passar mais de uma década no
exílio, inclusive durante a administração do general Médici.
Milton Santos e Carlos Marighella eram afrodescendentes.
Médici era branco.
O pleito foi coordenado pelo colegiado da escola, composto
por professores, funcionários, estudantes e pais de alunos _segmentos que tiveram
direito a voto. Ninguém propôs manter na cédula o nome atual _insatisfeitos com
as opções votaram branco e nulo. O colégio Médici é de ensino médio e
profissionalizante.
Continuam a existir no Brasil centenas ou milhares de sítios
públicos batizados em homenagem a próceres e símbolos da ditadura. Seria como
eternizar na Alemanha reverências do tempo do nazismo ou, na Argentina, da
ditadura 1976-83. Mas não existe escola berlinense Adolf Hitler ou praça
portenha Jorge Rafael Videla, o ditador que principiou o ciclo genocida.
Tiranos e açougueiros do passado não devem servir de exemplo aos jovens.
É esse o caminho apontado no colégio Médici, futuro colégio
Marighella.
Como assinalou a diretora Aldair, na origem da escolha pela
mudança de nome esteve uma exposição dos alunos, derivada de “um trabalho
espetacular da professora Maria Carmen”. Chamaram-na “A vida em preto e branco:
Carlos Marighella e a ditadura militar”.
Um vídeo com a socióloga e professora Carmen apresentando a
exposição :
Testemunho pessoal
Sou autor da biografia “Marighella – O guerrilheiro que
incendiou o mundo” (Companhia das Letras). Um exemplar aparece no vídeo, entre
os objetos expostos no _ainda_ colégio Médici. A professora Carmem disse,
comovendo-me: “Seu livro foi uma base e uma inspiração para esse trabalho”.
Como sabe quem leu a biografia, não produzi nem uma
hagiografia, promovendo os feitos do protagonista, nem um libelo contra ele.
Escrevi uma reportagem, contando o que Marighella fez, disse e, na medida do
possível, pensou. Não o julgo ou trato como herói ou bandido _empenho-me em
fornecer informações para cada leitor formar seu próprio juízo.
Mas, como dizia João Saldanha, grande amigo de Marighella,
eu não sou filho de chocadeira _tenho opinião. A ditadura foi um mal, e seus
crimes devem ser narrados, bem como os criminosos, punidos. A história não deve
apagar personagens, como a ditadura e suas viúvas tentaram fazer com
Marighella, ou como os artistas de Stálin faziam eliminando das fotografias as
pessoas caídas em desgraça.
A professora Carmem e seus alunos orgulham o Brasil. Assim
como é legítimo haver escolas com o nome de Carlos Lacerda (1914-77), líder de
direita de gigantesco talento, é legítimo reverenciar um dirigente de esquerda
como Carlos Marighella.
Ilegítimo é bajular em prédio público a memória de ditador,
perenizando o elogio das trevas.
Tomara que o governo Jacques Wagner não barre a decisão
democrática e soberana da comunidade que decidiu pela civilização, contra a
barbárie.
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