"Vamos à crônica dos fatos: na segunda-feira recebo um telefonema que ia me colocar na cena que estava vendo na televisão: o acampamento de jovens que estava fixada durante os últimos quatro dias a poucos metros da residência do Governador."
Sob a forma epistolar encontrarão a crônica de uma interessante experiência que Eduardo Losicer (Equipe Clinica Politica) vivenciou recentemente sobre o acampamento em frente da casa do Governador Sérgio Cabral.
Querido Osvaldo,
Você teve a feliz
oportunidade de acompanhar, nos três ou quatro dias que ficou por aqui antes de
voltar para nossa Buenos Aires querida, algo que imediatamente entendemos –
mesmo sem entender muito -- como um grande acontecimento: sem nada que o
pré-anuncie, vimos multidões de jovens tomando as ruas das cidades. Sem organização
nem bandeiras partidárias, movidos por uma pura vontade política de se
manifestar, mesmo com protestos difusos ou pontuais, sem lideranças, convocados
por redes horizontais, sustentando sua índole reivindicativa não violenta,
enfim, nesses dias começamos a ver um grande fenômeno político acontecendo
diante de nossos olhos e nos deixando perplexos frente a tanta novidade que nos
jogavam na cara -- logo a nós que já passamos por tantas barricadas e
mobilizações!
Terás percebido que estou fazendo um recorte do que podemos
entender como efeitos da grande mobilização, com seus inevitáveis usos,
reacionários, todos espúrios e parasitários da novidade. Colecionei uma série
de expressões – entre próprias e alheias – que tentam se aproximar daquilo que
pode haver de essencial neste novo sujeito social e político, independentemente
das transformações que possam vir a seguir. As expressões-síntese que até agora
me parecem mais fiéis ao que se passa são: ‘crise da representação’, ‘multidão
desejante, ‘pulsão de massa’, ‘testemunho’ e
outras. Claro que nenhuma delas é suficiente para concluir. Há uma ‘tentação de
concluir’ da qual queremos escapar.
Enquanto você estava aqui no Rio, brincávamos com a ideia de
qual seria a reportagem que você ofereceria aos amigos portenhos a respeito do
vivido no Rio e em São Paulo. E aqui está o motivo central desta carta: tenho o
relato de uma experiência, vivida no inicio desta semana, que fala por si e pode
ajudar aos que queiram imaginar (não dá mais do que para isso) algo da criatura
multitudinária que acaba de nascer. Em que se diferencia esta estranha recém-nascida,
sem pai nem mãe, que nem nome tem, como tiveram outras massas de jovens
mobilizados em outras praças do mundo? Depois da experiência que tive com os
jovens (vou usar a palavra ‘jovens’ condensando vários sentidos) na segunda e terça-feira,
posso dizer que pude fitar o rosto do monstro (vi a palavra ‘monstro’ usada
varias vezes para denominar o levante). Foi a Vera – ela própria participou da
partida da experiência – que, ouvindo meu relato posterior, me convenceu a
colocar meu testemunho por escrito. Me convenceu porque aprendemos juntos que o
testemunho vivo de um fato que pode vir a ser histórico é um instrumento
formidável para manter viva a ‘novidade’ que o acontecimento/multidão traz –
antes que as negações reacionárias do novo consigam destruí-lo -- e ajudar a
afirma-lhe sua alma política, nascida em estado ‘adulto coletivo comum’.
Vamos à crônica dos
fatos: na segunda-feira recebo um telefonema que, minutos depois, ia me
colocar, de corpo e alma, na cena que estava vendo na televisão: o acampamento
de jovens que estava fixada durante os últimos quatro dias a poucos metros da
residência do Governador. Quem me chamou era uma colega profundamente
sensibilizada com o contato que acabara de ter com eles. Principalmente quando
souberam que era psicanalista e lhe pediram ajuda. A preocupação era com alguns
companheiros com ‘os nervos a flor da pele’ e o perigo que isto se transforme
na faísca esperada pela repressão presente nos policiais que estavam cara a
cara com eles. Ainda por cima, a comunidade da Rocinha e do Vidigal estavam
descendo o morro e não se sabia de ‘acordos’ com eles. A colega lembrou de
nosso trabalho com clínica política (aqui não é necessário colocar aspas) e me
transmite o pedido. [vi depois pela televisão, que a comunidade da Rocinha
desceu cantando o hino nacional]
Indo com urgência
para lá me fez sentir como se estivesse a bordo de em uma impensada ambulância
clínico política. Convocado para ajudar em zona potencialmente conflagrada,
subjetivamente me sentia em esse estimulante estado em que deveria sentir
medo... mas não sentia. Não sabia se ia levar um tiro de borracha na testa ou
se me sentiria totalmente alienado – em tempo e espaço – da situação real que
me esperava, mas isso não era o mais importante. O que me preocupava era: de
que me serviriam os quarenta anos de clinico e militante para responder a esses
jovens ativados politicamente de uma hora para outra que me chamavam para a
praia do Leblon justamente porque no grupo se estava produzindo uma
subjetividade ‘nervosa’ que podia colocar tudo em risco?
Lá chegando pela avenida da praia, logo vi que a base real
dos acontecimentos era tão elementar que parecia irreal: não dava para
acreditar que aquela esquina com algumas dúzias de pessoas inidentificáveis,
sem ‘caminhão de som’, sem discurso a não ser o de suas enfartáveis cartolinas,
era um dos pequenos cenários em que estavam postos os olhos do Brasil inteiro.
O encontro com a pessoa que originou o pedido foi ‘direto’, para
usar a palavra que me parecia uma das mais significativas do movimento todo.
Quebrado o estranhamento inicial (tampouco ela acreditava que um analista tenha
se materializado na sua frente), nos entendemos rapidamente e combinamos que
voltaria para me encontrar com todos durante a manha do dia seguinte. Quando se
mostrou apreensiva com os companheiros que poderiam achar a psicologia como
individualismo fora de lugar, a tranquilizei dizendo que a psicologia que nos
praticamos não tem ‘ordem’, muito menos imposta, assim como eles não tem; por
tanto, era necessário combinar o obvio: participaria quem quiser.
E assim foi: a roda que formamos em plena rua funcionou durante
varias horas sob as barbas dos policiais, que a tudo assistiam a poucos metros.
Tampouco eles entendiam que um coroa como eu estivesse respondendo questões
sobre, por exemplo, terrorismo psicológico. Eram os jovens que chamavam deste
jeito a atitude dos policiais, fardados ou à paisana, recomendando em voz
baixa, ‘pelo seu bem’, sair do lugar antes que seja tarde. Não tiveram
problemas em entender que, neste caso, o terror não vem só da ameaça indireta,
mas da ambiguidade perversa de se apresentar como ‘protetor’. Vimos que o
melhor antídoto contra este tipo de terrorismo era tomar consciência, uma e
outra vez, que não havendo relação de forças violentas para ser comparadas
(repressão/resistência), era obvio que a relação da força política estava
integralmente do lado deles. Não, não haveria tanques (não estávamos na Praça
da Paz Celestial) nem qualquer força bélica que pudesse tira-los da posição
conquistada. Se eles eram combatentes do bom combate, tampouco haveria brechas
psicológicas para o medo infundido e não seria por isso que abandonariam a
colina conquistada. Lembrei-lhes que o terrorismo psicológico e a contrainformação
já tinham sido usados em larga escala em épocas da ditadura, mas que agora são
eles mesmos que estão provando que, embora vivemos em outra época, ainda
perduram os ecos do terror do passado.
Um caso mais grave de ameaça telefônica dirigida a família de um
dos jovens mais ativos foi a prova de que estes “serviços do Estado” ainda
estavam ativos. A família colocou todo tipo de impedimento para a participação
dele no acampamento. Era dramático ver o embate entre a instituição familiar e
a paixão desta nova forma de militância. Para complicar o quadro, a namorada,
presente, não podia disfarçar as divisões que a atravessavam. Embora a revolta fosse
grande, o laço solidário e o ‘não-medo’ do conjunto (a ‘causa’ nunca estava em
risco simplesmente porque não havia) eram suficientes como para esperar o
desenlace da impasse sem grandes dramas. Foi lembrado que a ameaça direta à
família era frequente quando a estratégia militar da repressão na ditadura se interessava
em cercar ate capturar os lideres, situação que esta longe de ser a deles, uma
vez que ele “se beneficiam” de ser uma massa-sem-lider, por pura opção. Longe
de ser um ‘defeito político’, não ter líder se torna virtude. Como diz Castells
no jornal de hoje “não há cabeças para cortar”. Alem disso, lembramos que antes
eram as câmeras secretas olhando os jovens. Hoje, alem do olhar midiático –
sempre caolho -- são milhares de câmeras celulares dos jovens olhando e
mostrando instantaneamente o que ocorre na realidade pontual para todo mundo.
Havia ali um poder publico em ato e, mesmo que sua evidencia e eficiência venha
a mostrar-se momentânea ou deturpada, o sentimento era que este poder estava
agindo em muitos outros lugares e que iria sempre ressurgir. Uma vez que este
desconhecido poder é liberado e demonstrado, não da para negar a novidade dos
fatos que cria, assim como não da para devolver o gênio à lâmpada.
A questão do grupo sem líder deu panos para manga, claro, mas
não no sentido que estamos acostumados a ver na clinica dos grupos. Esta
diferença facilitava tudo, porque os jovens entendiam perfeitamente que a
vontade política coesa e renovada dispensava o líder condutor assim como
dispensava o líder representante. Não havia messianismo de nenhuma espécie para
atrapalhar; a autossuficiência do coletivo era altamente convincente.
Outra questão derivada – mais instigante para mim do que para
eles –, que retoma o entendimento desta mobilização como ‘crise de
representação’: não havia ‘discurso critico’ orgânico, nem sequer criticando a
classe política, que é “a mãe” de todas as representações políticas. Ao mesmo
tempo, os mais lúcidos declaram que o movimento é ‘suprapartidário’, e com isto
se atribuíam o direito de excluir do movimento todo e qualquer emblema
partidário. Também faltava discurso fundante ou de projeto, tanto que fiquei
com duvidas se eles eram conscientes que estavam praticando uma forma legitima
de democracia – a democracia direta – ou a ela tendiam.
A conversa na roda reunida no asfalto -- coabitando com barracas
dos ocupantes e viaturas da policia -- corria fluida (às vezes mais do que com
os nossos próprios pares, pensava eu) embora descontinuada por necessidades do
momento. As questões que se colocavam pareciam sempre pertinentes, afastando
meus últimos temores de inadequação. Isto significava que, mesmo na situação
pratica mais ‘quente’, os princípios da clinica política com que trabalhamos na
nossa equipe se mostravam uteis. Alguns temas se transformavam em verdadeiros
seminários a céu aberto. Aquele que poderia se titular “o Perseguidor”, por
exemplo, permitiu distinguir seu efeito fantasmático na medida do necessário
para o momento, isto é, na medida em que ajuda ao perseguido a sair do terror
inoculado pela suspeita sempre presente e ameaçante dos infiltrados, sejam
informantes ou provocadores. O que provoca terror é mais a ameaça do ataque do
que o ataque real.
Algo que transmitia uma força insubstituível para o grupo era a
reação dos passantes: buzinadas e gritos que só se vem nas torcidas se
ofereciam como testemunhos do apoio da população. Nesses momentos, era nítido
que os jovens se sentiam legitimados, mas sem euforias triunfalistas, por serem
conscientes que tudo pode mudar de uma hora para outra. Neste contexto fui
testemunha de um fato altamente significativo: um dos vários carros que paravam
para dar alento ou para deixar uma contribuição; parou somente para deixar sua
doação: cartolina e água!
Falando em líder: te
conto que no meio da muvuca tive uma reminiscência fulminante. Compreendi
claramente o momento em que me iniciava como militante. Foi na minha adolescência,
fazendo ‘trabalho comunitário’ no subúrbio de Buenos Aires (retrato de “o
militante quando jovem”), quando assisti, passo a passo, ao nascimento de uma
líder comunitária. Arrebatado pela força dessa pessoa que parecia brotar de
outra pessoa, me converti. Não seria exagero, querido amigo, se te digo que,
olhando para o agir e o sentimento de certos jovens do acampamento, tive fortes
lampejos daquela companheira. Foi ela que originou meu percurso ate aqui,
pensei, e é aqui, numa esquina de outros países, varias gerações depois, vejo
germes da mesma incomparável potencia que me marcou a vida. Conste que naquela
época tínhamos a paixão revolucionaria para potenciar-nos em tudo, diferente
destes jovens brasileiros que se potenciam no encontro desejante comum. Tal vez
tenha sido a essência deste ‘comum’ que existe entre as pessoas que aquela
companheira argentina me revelou para sempre, e agora o reencontro em um
diminuto ponto luminoso do Brasil.
Bom, meu paciente
amigo, se depois desta sobredose de crônicas você quer mais, me avisa.
Um grande abraço,
Eduardo “Dito”
Losicer
(assino por extenso
para responsabilizar-me)
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