Arpilleras: Fonte de resistência e sobrevivência em tempos adversos
Por: Rosário Amaral
e Vera Vital Brasil
Junho de 2012
História e emoções vívidas estiveram
expressas na arte apresentada pela exposição “As Arpilleras da Resistência Chilena”, ocorrida entre os dias 29 de
maio a 05 de junho deste ano de 2012, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
Além da exposição de trabalhos têxteis, constava da programação três oficinas
com mulheres para a elaboração de Arpilleras,
e uma mesa redonda no dia 4.
A Arpillera
é uma técnica têxtil que se origina numa tradição popular de bordadeiras da
Isla Negra, região central do litoral do Chile. Em 1964 a artista plástica,
cantora e folclorista Violeta Parra, importante difusora internacional desse
trabalho, expôs uma série de Arpilleras
no Pavilhão Marsan do Museu de Artes
Decorativas do Palácio do Louvre.
Seguindo os passos de Parra, a curadora
Roberta Basic tem percorrido vários países da Europa e Ásia divulgando o
trabalho das Arpilleras. No Brasil a
exposição, produzida por Clara Politi, com o apoio do Projeto “Marcas da
Memória” da Comissão da Anistia, Ministério da Justiça, esteve também em Porto
Alegre, Curitiba, Brasília e Belo Horizonte.
Essa técnica, como explica Roberta, é uma “forma
de registrar a vida cotidiana das comunidades e de afirmar sua identidade; as
oficinas de Arpilleras não somente
representam a expressão dessa realidade como também se transformaram em fonte
de sobrevivência em tempos adversos”. A adversidade que a curadora se refere
advém, segundo ela, das condições socioeconômicas de seu país e do cerceamento
à liberdade política gerado pelo golpe militar ocorrido no Chile, em 1973.
Uma luta
pela Verdade e Justiça - “As Arpilleras
mostravam o que realmente estava acontecendo nas suas vidas, constituindo
expressões de tenacidade e força com que elas levavam adiante a luta pela
verdade e pela justiça” afirmou Basic, acrescentando que as obras quebraram o
silêncio dos problemas vividos pelos chilenos durante a violenta ditadura que
se abateu nos anos 70. “Hoje, são testemunho vivo e presente, e uma
contribuição à memória da história do Chile”, disse.
Arpilleras da Maré
Uma arpillera das mulheres do CRMM-CR |
Como parte da programação da exposição, três
oficinas foram realizadas com mulheres de comunidades do Rio de Janeiro, dentre
elas a constituída pelo grupo de 13 integrantes do Curso de Direitos Humanos do
Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-CR UFRJ). Durante
a visita guiada, Roberta Bacic descreveu os quadros da exposição, falando sobre
o período de violência, morte, sofrimento e falta de liberdade em que foram
bordados aqueles painéis de Arppilleras.
Ouvindo com muita atenção, observando detalhadamente os trabalhos, algumas das
mulheres indagavam sobre o que tinha havia ocorrido com o povo chileno durante
a ditadura de Augusto Pinochet.
Após a visita, os trabalhos foram iniciados
com três grupos de mulheres utilizando a técnica similar das Arppilleras chilenas, onde cada um deles
produziria na tela o tema que quisessem representar a partir das conversas
entre elas: a cidade do Rio de Janeiro, a escola, a comunidade, abordando
assuntos de conflito ou de alegria.
Para as mulheres da Maré a atividade das
oficinas, foi divertida, possibilitando compartilhamento coletivo, onde a
liberdade de expressão e autonomia esteve em alta, além de ser um momento de
reflexão sobre alguns aspectos da violência.
A mesa
redonda Memória Verdade, Reparação e Justiça, realizada no dia 4 de junho, coordenada
pela Professora Mariléa Porfírio, coordenadora do NEPP-DH, UFRJ, uma das
instituições organizadoras do evento, contou com a participação de Roberta
Bacic, Vera Vital Brasil e Carolina Campos Melo.
Arpilleras como instrumento de luta e elaboração do
luto
Roberta Bacic, curadora da exposição, deu
início ao debate: “As arpilleristas cujo testemunho compartilho nesta mesa
redonda dando voz e diálogo à exposição “Arpilleras
da Resistência Chilena” são mulheres que através de suas Arpilleras recolheram depoimentos, costuraram pedaços de memória,
resistiram à ditadura e se posicionaram da plataforma de mulheres que buscavam
seus homens e também suas mulheres desaparecidas. Em alguns casos faziam o luto
da perda ou se negavam a fazê-lo. ...”
As mulheres que no trabalho de Arpilleras deram um sentido para o
sofrimento que enfrentaram durante o regime ditatorial pinochetista, de 1973 a 1992, puderam recriar suas vidas deixando nas telas suas
histórias singulares e seu testemunho do que ocorreu neste período. A exposição
das Arpilleras da resistência ao
percorrer vários países tem sido um instrumento para a ampliação do debate
sobre as mais variadas situações de opressão do passado e do presente.
Roberta mencionou ainda a sua participação
como membro comissionado de uma das Comissões da Verdade em seu país que, logo
no início do regime constitucional, em 1991, instalou a chamada “Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação”, que investigou as mortes de cerca de
2500 pessoas durante o terrorismo de Estado, e que reconheceu publicamente,
através do relatório Rettig, a responsabilidade do Estado nestes crimes. Sem
apontar os autores, este amplo relatório foi apenas a “ponta de um iceberg”. Em
2004, a “Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura”, também chamada “ComissãoValech”, ampliou estas informações e
investigou cerca de 35 mil casos de tortura.
Roberta relata, por experiência própria, que
a natureza do trabalho do comissionado é difícil e complexa. Tomando como
referência o que os familiares apresentaram em tribunais, abriram-se portas
para situações variadas, como visitas a hospitais, escolas, registros civis,
para examinar dados, checar informações nas chamadas fontes “não jurídicas”.
Destacou, ainda, a importância da investigação do paradeiro de desaparecidos,
bem como do uso intensivo da força repressiva durante o período ditatorial. Os
relatórios finais apresentaram diretrizes, indicações para o Estado chileno. Como
avanço no processo de construção de memória e reparação, medidas de integração
de afetados foram adotadas, como, por exemplo, o reconhecimento na justiça de
união de mulheres cujos companheiros foram desaparecidos; no campo da saúde a
criação do programa de atenção, conhecido como PRAIS.
“Somos testemunhas do nosso tempo!”
“Diante da Comissão da Verdade,
instalada ainda que tardiamente em nosso país, temos a expectativa de que seus
resultados possam significar avanços no campo da Memória, Verdade e Justiça.
Que a sociedade civil organizada possa cobrar, mais e mais, para que os
resultados apontem as condições em que se deram as violações, seus responsáveis,
e que o relatório final possa ajudar na elaboração de futuros processos que
sejam levados à Justiça.” Foi o que afirmou a psicóloga Vera Vital Brasil, que
realiza há mais de 20 anos um trabalho profissional que conjuga atividade
clínica e política. Segundo ela “não há reparação aos danos causados à
sociedade se não houver o esclarecimento do ocorrido, ou seja, a verdade, bem
como a construção de memória e a justiça”.
A integrante do Coletivo RJ Memória Verdade
e Justiça diz que “somos testemunhas do nosso
tempo”. Vera traz na sua trajetória as marcas de uma então
estudante da faculdade de Farmácia da UFRJ, que teve
a sua formação interrompida pela prisão no Brasil e exílio no Chile, no final
da década de 60. É com propriedade que ela denuncia: “O Estado tem sido
agente de violações há muito tempo no país e continua cometendo violações. Praticou torturas, fez muitos mortos e desaparecidos no
passado recente, e continua hoje cometendo estes crimes de lesa humanidade de
forma sistemática e generalizada.”
A experiência no atendimento aos
perseguidos, aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos pela ditadura
militar no Brasil (1964-1985), através da equipe Clínica do Grupo Tortura Nunca
Mais RJ, e hoje atuando na Equipe Clínico Política, permite-lhe afirmar que os
danos provocados pela tortura e violência de Estado são irreparáveis, e “se
diferenciam dos danos cometidos, por exemplo, pela violência criminal ou
intra-familiar porque tem caráter político”. Segundo ela, “o Estado tem que se
encarregar de proteger o cidadão; deve garantir a integridade física, os
direitos e a vida do cidadão”. A psicóloga foi contundente ao falar sobre a
responsabilidade do Estado que tem violado suas próprias regras: “O Estado transgride sua própria norma; ele tem que ser
responsabilizado por seus delitos contribuindo assim para romper com o
sentimento de impunidade de agentes públicos hoje reinante no país”.
Sobre a Comissão da Verdade, que a
presidenta Dilma Rousseff instituiu recentemente para esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de
direitos humanos ocorridos no período da ditadura entre 1964-1985, disse: “A nossa expectativa é
que a Comissão da Verdade faça seu trabalho de investigação, exaustivo como
deve ser, tomando como base os documentos e os testemunhos. De documentos das Forças
Armadas, de instituições privadas e públicas que já estão sendo apresentadas
aqui no Arquivo Nacional. Porém, lembro que a ótica que
se apresenta nos documentos dos militares é a dos agentes da ditadura, não é a
nossa mirada, e a nossa mirada precisa ser colocada em cena. É preciso
que aqueles que vivenciaram o terror de Estado dêem seus depoimentos em livros,
em filmes, como muitos têm feito, mas também participem como testemunhas na Comissão da Verdade”.
Os dois conceitos de Anistia
Dos 70 mil requerimentos que a Comissão de Anistia recebeu até 2011, 35 mil foram
de pessoas que tiveram a condição de Anistiado
político decretada, sendo 15 mil delas com direito a reparação econômica. Este balanço foi apresentado pela
Conselheira da Comissão de Anistia,
Carolina de Campos Melo, durante o debate.
Carolina, através de uma problematização
histórica e jurídica, falou da dificuldade da idéia de Anistia no Brasil, onde estão em funcionamento duas Leis: uma de
1979, a de número 6.683, cujo sentido é o de esquecimento, porque não investiga
os autores dos crimes de lesa humanidade, e a outra, que constitui a Comissão
de Anistia, de número 10559, de 2002,
que insiste no conceito de Anistia
como liberdade, reparação. Tomando como base de análise a sua tese de doutorado
“Direito a Verdade”, defendida recentemente na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, argumenta sobre os dois conceitos de Anistia no Brasil. “Temos
uma Anistia como esquecimento, a da Lei
de 1979, Anistia pelo menos na
interpretação que foi dada pelos tribunais brasileiros, mas também temos o conceito de Anistia como liberdade.
Tem a Anistia requerida naquela época,
no início da redemocratização no Brasil, que redundou no retorno dos exilados ao
território nacional, e a Anistia que
acabou ganhando o conceito de não só Anistia
com liberdade, mas Anistia como
Reparação”. Chamou a atenção para a importância do momento político atual,
que considera como sendo “crucial” para que seja “colocado
em xeque o conceito de Anistia como esquecimento”.
Destacou, ainda, a importância da manifestação
de familiares de mortos e desaparecidos, das vítimas como uma tentativa valiosa
no sentido de que “o impacto do esquecimento seja quebrado de alguma maneira”.
Lembrou de “uma importante ação movida em 1982, pelos familiares da Guerrilha do
Araguaia. Foi no contexto dessa ação que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no final de 2010,
determinou a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação aos direitos
de garantia e proteção judicial de 70 guerrilheiros e em relação à investigação
dos desaparecimentos e julgamento dos responsáveis.” Lembrou ainda que esta
sentença foi ditada no mesmo ano em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou
a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, movida pela Ordem dos
Advogados do Brasil, para a revisão da interpretação ate então dominante da Lei
de Anistia. Carolina foi enfática em
considerar equivocada a posição da Corte
Brasileira que validou a vigência da lei de Anistia de 1979, que “confere um manto protetor aos torturadores”.
Neste contexto atual em que a Comissão da
Verdade inicia seus trabalhos, Carolina avalia ser um momento importante “para
fazermos o uso de algumas bandeiras; uma delas é o conceito de Anistia,
adquirido com a Constituição de 1988, que
permite os trabalhos da Comissão de Anistia, levando
a idéia de Anistia como liberdade, Anistia como reparação”, concluiu.
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